Literacia em Inteligência Artificial: De conceito abstrato a prioridade estratégica

07 Out, 2025

O ritmo de evolução da Inteligência Artificial (IA) nos últimos anos tem sido avassalador, conduzindo a uma das transformações tecnológicas mais rápidas e profundas da história recente. O que antes estava confinado a laboratórios e nichos especializados tornou-se parte integrante do quotidiano de quase todas as organizações, desde programas informáticos de produtividade até ferramentas de gestão, marketing, operações e apoio ao cliente.

De conceito a obrigação legal

Com a aprovação do AI Act da União Europeia, que entrou em vigor a 1 de agosto de 2024, a literacia em IA deixou de ser apenas uma boa prática para passar a ter enquadramento jurídico. Embora muitas disposições do AI Act entrem em vigor de forma faseada (até que, em 2027, o quadro regulatório seja plenamente aplicável em toda a União Europeia), a obrigação específica de literacia em IA, prevista no artigo 4.º, aplica-se já desde 2 de fevereiro de 2025. Isto significa que a literacia em IA é atualmente uma realidade obrigatória para as organizações que utilizam, desenvolvem ou fornecem sistemas de IA.

O regulamento associa a literacia em IA à proteção dos direitos fundamentais, à segurança, à transparência e ao escrutínio democrático. Em termos práticos, as organizações não se podem limitar a “adotar IA”, devendo antes garantir que as pessoas que lidam com sistemas de IA possuem conhecimentos proporcionais à sua função, nomeadamente no que se refere à compreensão dos riscos para os direitos fundamentais e para a segurança, à interpretação correta dos resultados e à aplicação de medidas de proteção adequadas, bem como ao conhecimento dos limites da tecnologia. Não se trata de transformar todos em especialistas técnicos, mas sim de garantir uma base de literacia prática que permita utilizar a tecnologia de forma consciente, responsável e em conformidade com o AI Act.

Porque é que a literacia em IA é também uma necessidade estratégica

Se, por um lado, a literacia em IA é agora uma obrigação legal, por outro, tornou-se também uma necessidade estratégica.

Do ponto de vista legal, a obrigação de literacia em IA já é uma realidade e as organizações devem preparar-se para um aumento da fiscalização por parte das autoridades europeias e nacionais.

Do ponto de vista estratégico, a confiança no mercado tornou-se um fator central. Clientes, parceiros e investidores exigem garantias de que a IA é utilizada de forma ética, segura e eficaz. A capacidade de demonstrar práticas responsáveis de IA não é apenas uma vantagem competitiva, mas um critério decisivo para a manutenção de relações comerciais e para o acesso a financiamento ou a novos mercados.

Da teoria à prática: primeiros passos possíveis

É aqui que a literacia em IA deixa de ser um conceito abstrato para passar a ter uma aplicação concreta. Sem a intenção de transformar este artigo num manual de formação, consideramos que poderia ser útil partilhar alguns passos práticos que podem ajudar uma organização a iniciar este caminho:

1. Mapear onde a IA já está presente

Atualmente, muitas organizações já utilizam ferramentas com funcionalidades de IA em tarefas diárias, como no software de recrutamento, nas campanhas de marketing digital, nos chatbots de apoio ao cliente ou até em soluções de compliance, sem que tal tenha sido previamente discutido ou formalmente aprovado pela equipa de gestão. É fundamental identificar esses pontos para compreender os riscos e as oportunidades associados.

2. Criar uma linguagem comum

Não é necessário que todos se tornem especialistas, mas é essencial haver uma base partilhada de conceitos. O que significa “alucinação”? O que é um sistema de alto risco? Quando é que um resultado deve ser validado manualmente? Uma linguagem comum e transversal evita mal-entendidos, facilita a colaboração, e reduz riscos.

3. Definir princípios internos de utilização

A literacia em IA não se limita ao conhecimento teórico, mas também envolve a capacidade de aplicar esse conhecimento de forma consciente no dia a dia. Regras simples podem fazer a diferença. Por exemplo: a IA pode apoiar os processos, mas não substituir a decisão humana em matérias críticas; os dados sensíveis não devem ser inseridos em ferramentas externas sem validação prévia e os resultados devem ser sempre verificados antes de serem utilizados. Estes princípios funcionam como guias práticos e acessíveis para todos os colaboradores.

4. Formar líderes e decisores, envolvendo o departamento jurídico e o de compliance

Num futuro próximo, praticamente todas as organizações serão, pelo menos, utilizadoras de sistemas de IA, muitas vezes integrados em softwares de utilização quotidiana. Isso significa que os líderes e os responsáveis pelas decisões terão de estar preparados para compreender os riscos, validar os resultados e assumir responsabilidades. No entanto, é precisamente neste nível que ainda existem muitas vezes lacunas significativas, dado que as decisões mais importantes continuam a ser tomadas sem os conhecimentos adequados sobre IA. Tal pode expor as organizações a riscos legais, reputacionais e operacionais.

Neste contexto, as funções do departamento jurídico e de compliance assumem um papel central: transformar princípios abstratos em políticas claras, criar processos de validação adequados e garantir que a utilização da IA está alinhada não só com o AI Act, mas também com os valores e a estratégia da própria organização.

5. Construir uma cultura de utilização responsável

A literacia em IA não deve ser tratada como um projeto isolado. Tal como a cibersegurança, deve estar integrada nas práticas de governação, compliance e gestão de risco. Isso implica uma sensibilização contínua, formação adaptadas às diferentes funções e o reforço de valores éticos no uso da tecnologia.

Conclusão

A literacia em IA já não é uma opção. Desde fevereiro de 2025 que é uma obrigação legal, mas também uma condição essencial para conquistar a confiança do mercado e garantir a utilização responsável da tecnologia.

Muitas organizações em Portugal e noutros países ainda estão a dar os primeiros passos nesta área. O mais importante é começar: investir em formação, sensibilização e governação prática permitirá transformar a IA não apenas num motor de inovação, mas também numa fonte de confiança, competitividade e crescimento sustentável.

 

Contato

Este artigo foi preparado por Anne Vogdt, Of Counsel na Proença de Carvalho.

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